quarta-feira, 30 de março de 2011

Dos filmes que eu vi: A Vida dos Outros

A Vida dos Outros (2006)  narra uma história "comum" e recorrente, em qualquer país que vive uma ditadura política, seja ela de direita ou de esquerda, que é a criação de uma polícia especial para vigiar a vida do cidadão suspeito de ser contra o regime político do país.
No caso do filme se trata de uma ditadura de esquerda, já que a história se passa na Alemanha Oriental na década de oitenta.
A narrativa nos mostra como essa polícia especial muitas vezes é utilizada para atender aos interesses pessoais daqueles que ocupam cargos no aparelho do Estado.
O que essa história tem de diferente e que a torna especial aos meus olhos de espectadora, é o fato de que o policial, que vigia o mais conhecido dramaturgo do país, vai mudando  seu olhar e o seu modo de entender e de se colocar diante da vida, ao vigiar o  cotidiano do outro. 
O vigiado funciona como um espelho através do qual o policial revê sua vida e seus conceitos políticos ideológicos e muda seu modo de olhar e estar no mundo.
Como consequência dessa mudança ao invés de mandar prender o vigiado ele passa a protegê-lo.
Contribuem para essa mudança  o contato que o policial passa a ter com a música, com o teatro e com o texto de Brecht, livro que ele rouba do outro. 
Outro fator que contribui para a mudança do policial é o fato dele, ao  assistir como um voyeur a vida do outro, perceber que ali pulsam sentimentos até então desconhecidos para ele, policial fiel e  devoto ao regime político, que vive para o trabalho e não tem vida própria. O dramaturgo, ao contrário, para além de seu trabalho,  tem uma companheira, tem amigos e sonhos. Ele e seus amigos arriscam a perderem a liberdade e o direito de exercerem a profissão por denunciarem, fora de seu país, o regime político opressor.

Outro fator que merece destaque para mim  é o fato do policial, que até então era um torturador, especialista em interrogar e quebrar a resistência de um preso, mudar de lado e escolher mostrar seu lado bom. Naquele caso específico a mudança operada no policial foi tão radical que ele mudou de lado. Ao invés de ser o algoz do vigiado escolhe  salvar sua vida. Essa escolha tem um preço bastante alto pois ele perde sua patente.
É um filme que gostei muito de ter visto. O ser humano está ali retratado em toda a sua complexidade como um  ser ambivalente, inacabado e mutável.
Esse  filme foi escrito e dirigido  por Florian Henckel von Donnersmarck, um roteirista e diretor novo que promete histórias bem contadas e bem dirigidas.

segunda-feira, 28 de março de 2011

Dos filmes que eu vi: Incêndios

Incêndios é um filme franco canadense de 2010, que vem atualizar o mito de Édipo.
A história, que é muito bem contada, é narrada em dois tempos. Passado e presente. Passado da mãe que acaba de morrer e cujo testamento obriga a seus filhos, um casal de gêmeos, a partirem em busca do passado materno pleno de fatos, até então, desconhecidos do passado de ambos.
Na narrativa  o rapaz nada quer saber sobre isso. Sua irmã sim. Ela  é matemática e para continuar a exercer sua atividade profissional é aconselhada por seu mestre a partir em busca de seu passado. E é o que ela faz.
Achei bonita a relação que o mestre faz entre a matemática pura e a busca de entender o real. O real é algo que tira o chão do sujeito quando emerge e se impõe no cotidiano, até então mais ou menos arranjado, do sujeito.
As revelações do testamenteiro são da ordem do real.
Buscando atender a demanda materna a irmã parte para Palestina para encontrar um irmão desconhecido e um pai que acreditavam morto. Só depois dessa busca ter sido bem sucedida eles poderiam colocar uma lápide no túmulo da mãe.
O que se segue a partir daí são pequenas  histórias, pequenos recorte de real, com subtítulos que  retratam diferentes épocas da vida da mãe, que vão sendo conhecidas pela filha.
A narrativa é muito bem feita. Assistimos ao mesmo tempo fatos que a filha vai descobrindo  e o mesmo fato sendo vivido pela mãe.
Essa forma de contar a história é interessante porque nos mostra que o que a filha descobre é sempre parte da experiência vivenciada pela mãe. Algo do vivido pela mãe sempre escapa uma vez que a filha tem acesso ao passado da materno por terceiros, através de relatos de outras pessoas.
As  historietas narradas são repletas de preconceito, morte, vingança, horror, determinação, tortura, incesto, dor. Verdadeiros incêndios. Tudo feito em nome de Deus!
O horror presente no mito do Édipo é atualizado na história da mãe. Ela uma mulher que enfrentou a vida com determinação e ousadia, cantando para se manter viva e livre na prisão não suporta descobrir, nos pés marcados de seu filho que lhe foi tirado ao nascer, o rosto de seu torturador. Frente a esse saber ela prefere a morte.
A excelente direção é de Denis Villeneuve.
Esse filme com certeza não pode ser recomendado para as pessoas que entendem que cinema é só entretenimento. 
PS: Achei bem interessante a filha ter ido tão longe para  tentar encontrar alguém que estava tão perto.