quarta-feira, 24 de março de 2010

Da herança recebida ou de como passei do inferno para o céu.

Hoje recebi cópia da escritura casa que foi dos meus pais. Casa na qual morei por 17 anos.
Eles doaram a casa para nós, seus filhos, que na época éramos estudantes e solteiros. Eu, na ocasião, tinha dez anos.
A certidão é muito interessante. Reza naquele documento a descrição da casa e sua vizinhança.
A descrição é nominal. Todos os vizinhos são citados. Talvez porque, naquela época, conhecíamos os nossos vizinhos com os quais estabelecíamos relações solidárias.
De um lado éramos vizinhos de Newton Braga, irmão de Rubem Braga, e do outro lado do senhor Breno Barroso. Nos fundos de nossa casa, já em outra rua, morava a família do senhor Emiliano Coelho Rocha. E na frente da casa ficava a rua onde morei até completar 18 anos.
Da família de Newton Braga eu me lembro bem. Dona Geni era uma pintora primitiva. No quarto do casal, na parede atrás da guarda da cama, tinha pintado uma enorme paisagem. Era uma floresta bem tropical com um grande Saci Pererê. Lembro que essa pintura provocava muitos comentários nas demais famílias da vizinhança. Todas tinham um crucifixo atrás da cama de casal. Aquela pintura me despertava medo e fascinação ao mesmo tempo.
Da família de seu Emiliano também guardo boas lembranças. Eles tinham uma chácara e eu brinquei muito por lá com Regininha, que era minha amiga na infância. Lá chupei muita manga verde com sal, comi genipapo, goiaba e aproveitei o enorme quintal que eles tinham.
Agora da família do Senhor Breno não guardo nenhuma lembrança.
Só lembro daqueles vizinhos depois que mudaram para lá a família de Hélio Herkenhoff.
Na infância e no começo da adolescência fui muito amiga de suas três filhas maiores.
Dona Maria de Jesus, mulher de seu Hélio, teve uma importância muito grande na minha infância. Época em que eu era uma criança arteira e cheia de ideias, motivo pelo qual ficava sempre de castigo. Se fosse só o castigo tudo bem. Para além do castigo tinha o peso do pecado em uma família católica como a nossa. Aliás tudo era pecado. Não nos restava muita saída a não ser confessar todo sábado. Tinha uma listinha de pecados que se repetiam: respondi ou desobedeci minha mãe, briguei com minha irmã ou com alguma amiga, falei mentira, e falei merda, que era o único palavrão que eu dizia, para escândalo de algumas mães de amigas minha.
Com tanto pecado cabeludo achei que estava perdida!!! Quando morresse iria mesmo para o inferno. Confesso que essa possibilidade era aterrorizante para mim naquela época!
Fui salva do inferno por Dona Maria de Jesus. Não me lembro nem como ou porquê, contei para ela desse meu medo. E de como eu era ruim. Ela riu e me perguntou de onde eu havia tirado aquilo. E disse que eu era uma boa menina e me garantiu que eu não iria para o inferno.
Não me lembro se ela me prometeu o céu. Mas ela tirou um peso tão grande de minha consciência que eu fiquei mais leve, mais alegre e devo ter ficado mais levada, talvez.
Acho até que passei a ter menos pesadelos e medos, desses que assombram a infância.
O peso da palavra do adulto é muito grande para a criança. A criança precisa da garantia do adulto para saber de si. O adulto é o garantidor da criança. Ela fez em mim uma aposta amorosa e positiva. Só tenho a agradecer.
A palavra do adulto é fundamental para que a criança se veja no espelho e tente responder a esse lugar em que ela se supõe esperada e amada pelo outro.
PS. Fiz uma confusão com o nome das vizinhas e minha irmã Maria Amália me corrigiu em seu comentário abaixo. A pintora, mulher de Newton Braga era Dona Izabel Braga. Dona Geni era mãe da Regininha minha amiga.

4 comentários:

  1. Fiquei emocionada com as suas lembranças... e acabei me perdendo nas minhas próprias lembranças de infância e a pensar que hoje não temos mais esse contato direto com os vizinhos, mal os vemos, sobretudo quem mora em apartamento´, como é o meu caso. Sinto falta de uma época em que, assim como você, tinha mais proximidade com os vizinhos.

    No que se refere às apostas amorosas, tem toda razão. Precisamos cuidar melhor de nossas crianças, permitir que se sintam amadas, cuidadas...

    Obrigada. Ler seus pensamentos logo de manhã certamente me fará ter um dia melhor... um abraço, Fabíola.

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  2. Oi Fabíola, obrigada pelo seu carinho.
    Um abraço,

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  3. Me coloquei dentro de suas
    recordações,fazendo parte desta família,vivendo 30anos nesta casa,revivi o que aconteceu comigo.Somos realmente o que determinam nossos pais, mas mesmo assim agradaço a eles as boas e más recordações que tenho, pois tenho consciencia de que nossos pais nos deram o melhor de si.Tivemos uma infancia cercada por vizinhos que faziam parte da familia, eram amigos sinceros.Adorei o que voce escreveu, só faço uma correção:D. Geni é a mãe da sua amiga Regina, morava na chacará,era porf. de educação fisica e excelente doceira, pintora era Isabel Braga

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  4. É mesmo Maria Amália. Você está certa. A pintora era Dona Izabel Braga. Abraço e obrigada.

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